Deixou-nos aos 97 anos esta amiga generosa, com uma memória fabulosa e uma longa história de vida de trabalho, testemunho de tempos difíceis de lutas e cansaços.
A MONDA DO ARROZ, DO TRIGO E A CEIFA NO ALENTEJO
Fui um ano à monda do arroz no Alentejo, perto de Alcácer do
Sal. Havia um homem na Tôr, o Armando que arranjava o grupo e fui eu, a minha
filha Vitalina com quinze anos e a Tia Teresa Maia. Deixei a Belinha, que devia
ter uns três anitos, com a avó, a tia Rosalina. Levámos xerém, grãos e feijão
para as refeições e mantas. Íamos com água até aos joelhos, usávamos umas meias
altas sem pés para andarmos descalças e íamos em grupo mondar o arroz na lama e
dos mosquitos.
Havia sempre uma mulher que fazia o comer para todos em
panelas de barro no campo e fogueira a lenha.
À noite dormíamos no chão do armazém, em cima de capachas e
embrulhadas nas mantas que levávamos.
Eu já tinha ido com o meu marido à ceifa no Alentejo, e
deixei a Vitalina com a avó, mas depois da monda do arroz disse para mim que
preferia comer pedras a voltar a ir à monda do arroz e nunca mais fui.
A VIDA ANTIGA ERA MUITO DURA
Trabalhei muito para criar as minhas moças e o meu homem era
um moiro de trabalho.
Com as raízes e cepas dos carrascos que arrancava fazia
carvoeiras pondo a lenha em covas, ateando fogo e depois cobrindo a lenha a
arder com terra.
Ia vender o carvão a Loulé em sacas de abuano no burro,
dentro das gorpelhas. Passava pelas Adegas, ia a corta mato, passava à
Carronca, atravessava a ribeira, saía aos armazéns da Pardalinha na Cruz da
Assumada e em Loulé íamos vender pelas casas. Com o dinheiro que arranjávamos
comprávamos batata doce, couves e outros avios.
Criávamos porcos e partíamos de madrugada com uma porca e os
filhos, que podiam chegar a oito ou nove numa ninhada. E lá ia eu a pé com a
porca e os bacorinhos à frente até ao mercado em Loulé, que ficava fora de
Loulé no sítio da Barreira. Vendíamos os porcos que não davam avondo para tanta
procura.
O pai do meu homem morreu em França no fundo de uma mina de
carvão no norte de França e ele era ainda pequeno e foi a avó que tomou conta
dele.
NO TEMPO DO RACIONAMENTO (1940-44)
Uma ocasião encomendei milho de contrabando à tia Mariana
das Dores, que morava perto do Lagar. Lembro-me que cheguei lá estava a bater 6
horas no sino da igreja de Salir. Carregámos os meio alqueires de milho nos
talegos no canto da gorpelha e lá vinha com medo de ser apanhada.
Noutra ocasião fui comprar farinha no moinho na Cabeça da Areia, a meio da noite, a cavalo do burro, porque era proibido na altura vender farinha. O moleiro veio espreitar com a candeia acesa e lá me vendeu uma saca de farinha e eu vim a pé monte abaixo a baixo, com o burro pela arreata.
O CASAMENTO
No outro tempo faziam uns arcos por cima da rua com
biscoitos e flores e os convidados e os noivos passavam por baixo montados nos
muares e iam apanhando os biscoitos e comendo.
Jogávamos flores para cima dos noivos quando eles passavam.
Eu estava grávida de sete meses e queria-me casar com o meu
homem que vivia com a avó e eu com os meus pais. Fui a Salir no carro de besta
do tio Luz, fui-me confessar ao padre “pequenino”, que era da Carrapateira. Ele
olhou para mim e disse-me “ó minha filha estás mais que confessada” e mandou-me
embora.